segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Stela do Patrocínio

o tempo é o gás, o ar, o espaço vazio


STELA DO PATROCÍNIO, nascida em 1941, impressionou profundamente a artista plástica Neli Gutmacher e suas estagiárias, quando esta foi convidada, na década de 80, a montar um ateliê na Colônia Psiquiátrica Juliano Moreira. Interna desde 1962, Stela se destacava dos outros pacientes por sua fala peculiar, com alto teor poético. Algumas de suas falas foram gravadas em fitas cassetes e, quase quinze anos depois, foram transcritas, organizadas em forma de poesia e reunidas em livro pela escritora Viviane Mosé. "Reino dos bichos e dos animais é o meu nome" atingiu tal repercussão que, em 2002, tornou-se finalista do Prêmio Jabuti e, em 2005, levou a fala de Stela a ser transformada em ópera pelo compositor Lincoln Antonio. Apesar de amplamente divulgados e acolhidos com entusiasmo por poetas e intelectuais, seus poemas permanecem relativamente desconhecidos do público em geral, talvez pela falta de uma divulgação pública das gravações, ou de uma nova edição com a transcrição integral de sua fala.

Totalmente abandonada pela família, Stela permaneceu por quase 30 anos interna da colônia psiquiátrica, sem nunca ter saído de lá; veio a morrer em 1997, vítima de uma infecção generalizada.

Os poemas aqui presentes seguem a formatação e a seleção proposta por Viviane Mosé e foram publicados sob autorização da Azougue Editorial.






É dito: pelo chão você não pode ficar

Porque lugar da cabeça é na cabeça

Lugar de corpo é no corpo

Pelas paredes você também não pode

Pelas camas também você não vai poder ficar

Pelo espaço vazio você também não vai poder ficar

Porque lugar da cabeça é na cabeça

Lugar de corpo é no corpo



*



Olha quantos estão comigo

Estão sozinhos

Estão fingindo que estão sozinhos

Para poder estar comigo



*



Eu já fui operada várias vezes

Fiz várias operações

Sou toda operada

Operei o cérebro, principalmente



Eu pensei que ia acusar

Se eu tenho alguma coisa no cérebro

Não, acusou que eu tenho cérebro

Um aparelho que pensa bem pensado

Que pensa positivo

E que é ligado a outro que não pensa

Que não é capaz de pensar nada e nem trabalhar



Eles arrancaram o que está pensando

E o que está sem pensar

E foram examinar esse aparelho de pensar e não pensar

Ligados um ao outro na minha cabeça, no meu cérebro



Estudar fora da cabeça

Funcionar em cima da mesa

Eles estudando fora da minha cabeça

Eu já estou nesse ponto de estudo, de categoria



*



Eu não queria me formar

Não queria nascer

Não queria formar forma humana

Carne humana e matéria humana

Não queria saber de viver

Não queria saber da vida



Eu não tive querer

Nem vontade para essas coisas

E até hoje eu não tenho querer

nem vontade para essas coisas



*



Não sou eu que gosto de nascer

Eles é que me botam para nascer todo dia

E sempre que eu morro me ressuscitam

Me encarnam me desencarnam me reencarnam

Me formam em menos de um segundo

Se eu sumir desaparecer eles me procuram onde eu estiver

Pra estar olhando pro gás pras paredes pro teto

Ou pra cabeça deles e pro corpo deles



*



Eu sobrevivi do nada, do nada

Eu não existia

Não tinha uma existência

Não tinha uma matéria

Comecei existir com quinhentos milhões e quinhentos mil anos

Logo de uma vez, já velha

Eu não nasci criança, nasci já velha

Depois é que eu virei criança

E agora continuei velha

Me transformei novamente numa velha

Voltei ao que eu era, uma velha



*



Eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo

Eu era ar, espaço vazio, tempo

E gazes puro, assim, ó, espaço vazio, ó

Eu não tinha formação

Não tinha formatura

Não tinha onde fazer cabeça

Fazer braço, fazer corpo

Fazer orelha, fazer nariz

Fazer céu da boca, fazer falatório

Fazer músculo, fazer dente



Eu não tinha onde fazer nada dessas coisas

Fazer cabeça, pensar em alguma coisa

Ser útil, inteligente, ser raciocínio

Não tinha onde tirar nada disso

Eu era espaço vazio puro



*



Não deu tempo

Eu estava tomando claridade e luz

Quando a luz apagou

A claridade apagou

Tudo ficou nas trevas

Na madrugada mundial

Sem luz

retirado de http://www.confrariadovento.com/revista/numero11/phantascopia.htm

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